Final do dia
A parte má de se ter muitos filhos é o final do dia. É um pesadelo. O final de um dia numa casa cheia de crianças é um sítio não aconselhável a pessoas sensíveis, idosos ou utentes com problemas cardíacos.
Alguém com este perfil não deve, em circunstância alguma, aproximar‑se num qualquer final de dia de uma casa onde vivam mais de três crianças. E se souberem que ali vivem seis, aconselho a afastarem‑se pelo menos dois quilómetros. É que o ambiente que ali se vive é quase tão infernal como aquele dia no Pingo Doce das promoções de 50 por cento. A agitação e a gritaria são mais ou menos as mesmas.
Toda a gente me pergunta como é que eu faço para despachar seis crianças de manhã (despachar é mesmo o termo); para as pessoas em geral a grande incógnita sobre rotina da minha vida prende‑se com as manhãs. Não, meus senhores, as manhãs são um passeio à beira mar: estamos todos meio a dormir e a única pessoa que grita sou eu. A altura verdadeiramente crítica é o final do dia. As crianças não se dão bem com esta fase do dia. Passam‑se. Desde bebés que são assim. Em bebés choram, têm dores de barriga e agitam‑se mais do que o resto do dia sem razão aparente ou mais rebuscada. É assim porque sim. E quando crescem ficam
desaustinados.
Enquanto nós, pessoas normais, estamos arrasados às sete da tarde e suspiramos por paz, por silêncio, por descanso e o nosso cérebro entra em ponto morto, as crianças não. No final do dia as pilhas deles aparecem milagrosamente recarregadas. A escola, que devia dar cabo deles, não tem essa capacidade. Ao final do dia é quando se dão todas as discussões, é quando se verifica a capacidade vocal de cada um, é quando eles se lembram de contar imensas histórias, de dar milhares de recados, de se queixarem da vida e até de expressarem a sua incredibilidade por alguns temas metafísicos, religiosos ou científicos. Tudo isto ao mesmo tempo que estudam, tomam banho, arrumam as roupas e os livros da escola, brincam, veem televisão ou estão no computador. Com dois ou três, a coisa faz‑se bem. Mais do que isso, é um hospício. Por isso é que eu tenho a certeza que 96 por cento dos castigos dados às crianças em todo o mundo são referentes a atos, a pensamentos e a omissões de cariz asneirento verificados nesta altura do dia.
O grande desafio de um adulto que esteja a viver esta delicada circunstância é manter a concentração. As crianças falam todas ao mesmo tempo, ou seja, elas não acham que tenham de estar caladas só porque alguém já está a falar com o mesmo interlocutor. Por isso, no caso do estudo, elas têm dúvidas em simultâneo. E dúvidas absolutamente distintas porque as idades variam. Temos, portanto, de manter a concentração quando somos forçados a responder a questões sobre contas de somar, expressões numéricas com números negativos, a crise do século XIV, como se faz o i e sobre o esqueleto. Ao mesmo tempo que vamos apanhando do chão a chucha da criança mais nova que vai refilando porque quer colo. Passando este desafio fica a faltar apenas os banhos, a arrumação, o jantar e a gestão das discussões, das brincadeiras e dos gritos.
É por causa dos finais do dia que a minha avozinha alegava que onde as crianças estão bem é nas fotografias: onde não há perigo de acordarem. A boa notícia é que, eventualmente, todas crescem. E tal como o socialismo se vai esbatendo com a idade, também os finais do dias vão pacificando. Até ao conservadorismo final, em que passam a amantes da paz, da ordem e da serenidade.
Regresso à escola
Depois da RTP Memória só o regresso às aulas me provoca igual neura. Só o conceito, regresso às aulas, deprime‑me. Mas pior do que o conceito, é o domingo que antecede o regresso. E pior ainda que o domingo, é o final do dia desse domingo: aquelas horas, em que se antecipa a rotina que nos acompanhará todo um ano lectivo, são mais tristes do que o inverno na Islândia.
Desde que me lembro de mim e da tortura das aulas que o regresso às aulas me atormenta. Dizem, os adeptos do regresso às aulas, que o cheiro dos livros novos, que a compra dos material novo, que a ansiedade em conhecer amigos e professores novos, é uma maravilha. Que é quase tão bom como o Natal. Nunca entendi este entusiasmo e sempre me pareceu meio forçado. Como é que alguém se pode sentir confortado com o cheiro de um livro de Química? O que é que um conjunto de lápis de cor tem de especial ao pé de uma bola de Berlim na praia? Que raio de felicidade pode compensar o facto de nos arrastarem das férias, a anarquia dos horários e nos interromperem uma vida boa e descontraída em detrimento de uma espécie de trabalhos forçados? Nada.
Quando um dos meus filhos ameaçou ir feliz e a cantarolar a caminho do primeiro dia de aulas da sua vida, o irmão mais velho, já experimentado e com dois domingos neuróticos no seu currículo escolar, tirou desta forma o sorriso da cara do caloiro: “Olha, a partir de agora vais ter de trabalhar toda a tua vida, todos os dias. Todos, todos. Este é o primeiro dia de uma vida de trabalho em que nunca mais tens descanso. E quando parares, é porque estás velho e vais morrer”. Pragmático. O outro, perante esta espécie de maldição, baixou os ombros e nunca mais se atreveu a cantarolar na véspera de um regresso às aulas.
Estamos a dois dias de mais um dia destes. E a um dia de mais um domingo neurótico. Ao fim de quase três meses, regressámos à escola. Já comprei o material e os livros e já passei os horários, tenho agora uma pequena ideia do ano que me espera e já adverti que este fim de semana “começamos a acertar os horários”. As estantes estão mais ou menos vazias à espera de se encherem com novos de papéis, novos livros e novos trabalhos escolares e os imanes do frigórico foram aliviados para estarem disponíveis a suster novos desenhos, novos recados, novos convites e novos lembretes. O regresso às aulas está eminente.
Eu sei que tem de ser, que três meses de férias são um exagero e que é óbvio que eles têm de regressar às aulas. Só não acho que isso seja bom, que seja motivo de alegria e que os livros novos cheirem bem. Tem de ser. Ponto.
Quando disse, avisei, os meus filhos que a boa vida estava quase, quase a acabar, ia chorando. Senti‑me uma espécie de traidora da felicidade. Eu, que sempre fui contra o regresso às aulas disse “acertar os horários” – o que quer dizer que amanhã, vão todos para cama cedo, sem sono. Tristes.
A partir de amanhã voltamos às rotinas, ao estudo, aos gritos, às tosses, ao cansaço, aos testes, às reuniões, ao deitar cedo e ao levantar cedo. E ainda por cima o mau tempo deve estar a chegar. Perguntaram‑me se os meus filhos estavam ansiosos por voltar às aulas. Não, respondi, saem à mãe. Aqui em casa só se pode ansiar pelas férias; quando tiverem a casa deles, é como eles quiserem. Até lá, o regresso às aulas é uma neura. Ponto